Podemos imaginar a comunidade humana como oriunda de uma horda de animais. Em uma manada de animais já existe uma hierarquia social declarada. A força física ou psíquica e a atividade determinam rigorosamente quem deve morder e oprimir os outros, quem deve liderar o conjunto do rebanho.
Da mesma forma, cada um isoladamente, inclusive os animais
mais fracos ou os jovens, encontram proteção no interior do rebanho. A
psicologia tem demonstrado que a hierarquia social, inclusive a da família não é
um fenômeno especificamente humano, encontra-se também entre os outros animais.
No que consiste a diferença entre a formação das comunidades
humanas em relação aos animais?
É possível que os homens vivessem em pequenos bandos, sua
economia baseava-se na coleta de frutos e raízes e na caça. Refugiavam-se das
intempéries nas cavernas naturais e retiravam-se conforme as variações
climáticas à cata de suas presas. Mais tudo isto não ultrapassa muito as
possibilidades de um bando de animais, exceto pelo uso de instrumentos e pela
descoberta e uso do fogo.
Diferentemente dos animais, deparamos, bruscamente, com esses
notáveis desenhos e gravuras de animais que eram caçados, desenhos e gravuras
que se conservaram até nossos dias, em cavernas fechadas. Lá está o testemunho
decisivo de uma existência humana conforme as concepções que dela temos.
Os autores desses desenhos eram os chefes desses grupos. Não
encontramos essas gravuras nas cavernas dedicadas à moradia, mas somente
naquelas cavernas dedicadas ao culto. Uma série de indícios indica que elas
serviam à magia da caça, à defesa e ao domínio dos animais perigosos.
As imagens traduziam a intenção da comunidade, o medo, o
pavor que o homem tinha diante do animal era vencido pela contemplação cultural
da imagem, quando ele conseguia representar a criatura temida em uma cópia
inofensiva que ousava encarar de frente.
O importante é que essa ação ritual seja um dado da
consciência. O curandeiro não é apenas o pintor dessas figuras, mais ao preceder
aos outros no domínio do perigo e do medo, leva o grupo a se sentir uma
comunidade.
Estas relações tornam-se mais complexas durante a evolução da
humanidade. A situação típica na qual a comunidade humana, pela participação
consciente de parte de seus membros numa tarefa se realiza diante de um símbolo
de sua criação, será em toda parte semelhante, ainda que freqüentemente nem tão
plástica nem tão simples.
Assim o fato de dedicarem-se a fabricação de utensílios ou
substituir a pró-criação natural por prescrições como o casamento (que impedia o
incesto) marca o aparecimento de instituições autônomas que, como cerimônias
rituais conscientes que substituem a organização instintiva do homem. A
antropofagia é substituída e reprimida e, sobretudo, a objetivação do mundo
através da linguagem, ilustram de forma rica os primórdios do universo cultural
do homem.
Desde o primeiro instrumento criado pelo homem de Neanderthal
a técnica não parou de desenvolver-se. Os problemas da formação dos grupos
humanos ajustam-se a evolução da técnica à medida que se transformam as tarefas
que tem que ser resolvidas.
O domínio da agricultura e da pecuária (10.000 a.C.)
transforma radicalmente a vida do homem, que logo se torna sedentário. Assim o
sedentarismo, agricultura e pecuária são promessas econômicas das “grandes
civilizações Orientais”.
Foi partindo das comunidades camponesas que as “grandes
civilizações” se desenvolveram. Encontramos grandes vales fluviais cercados de
desertos ou de florestas virgens que só poderiam tornar-se habitáveis se os
cursos d’água fossem regularizados, organizados, com fim de irrigar e fertilizar
os campos, de modo que as enchentes e longas secas não inundem ou sequem, as
áreas aráveis. A regularização deve ser objeto de uma região toda, de um acordo
coletivo. Na raiz da palavra chinesa “governar” subsiste a etimologia
regularização dos rios. A situação geopolítica do Egito, ainda hoje, lembra o
5ooo Ac que exigiu a formação de grandes aglomerados e de projetos coletivos em
grande escala.
O império egípcio formou-se pela reunião coercitiva do Baixo
e Alto Egito e de uma série de distritos no interior dessas regiões, autônomos
ainda por algum tempo e a tarefa dominante era o controle das cheias regulares
do Nilo e a irrigação das terras. Devido ao trabalho comum para a regularização
do rio, organizado e dirigido pelo “Estado”, a gleba de cada família, de cada
aldeia era irrigada e fertilizada pelo humos do Nilo, de tal forma que o
trabalho individual em cada gleba podia cobrir-se de êxito. Os trabalhos
coletivos não são nem fantasia nem uma coerção brutal, é uma resposta criativa
do homem as exigências que a natureza lhe impôs.O Estado (faraó) tem como missão
principal à regularização do Rio Nilo, mas tem outras missões: segurança
(interna/externa), o instituto do direito, o desenvolvimento do artesanato, do
comércio, a construção de cidades e a distribuição do produto social.
O essencial é que, já nas premissas econômicas, o individuo,
a família e até pequenos grupos não podem viver se os problemas gerais, em cujo
quadro a vida decorre, não são solucionados. Ainda que a supremacia do Império
sobre o individuo surja pela violência, conquista e sujeição, sua permanência é
motivada de forma racional, não senão ao preço dessas exigências que a vida pode
continuar. Em conseqüência a dominação não é mais só opressão e exploração do
homem, mais responsabilidade em face do povo dominado. Os abusos posteriores,
com opressão e exploração devem-se a independência dos dominadores em relação
aos dominados.
É por meio da linguagem que a comunidade se projeta, no lugar
das pinturas rupestres existe agora um mito, a própria comunidade, representada
como sendo denominada pelos deuses, porque a idéia de um acordo acerca de certas
tarefas é inexplicável. O Faraó é o filho dos deuses, sua divindade é a própria
força vital inexaurível, superior a tudo. É dessa força criadora (Ka) que reside
à felicidade e a prosperidade da comunidade, cada um recebe do rei à parte da
força divina (Ka) de que precisa.
Na veneração do Faraó, nas cerimônias de ascensão ao trono,
na conservação de seu cadáver e seu sepultamento em monumentais pirâmides, em
cujas construções o povo trabalhava gratuitamente dezena de anos, não era o
homem que fora soberano que se venerava, mas a própria comunidade nele
representada, assim o povo visava sua própria individualidade divina.
No culto, cada individuo participava conscientemente da
comunidade, no faraó a parte divina, imortal, de cada individuo transitório da
sociedade era objetivamente real e presente na terra.
O mito não se limita aos homens, o país que o povo habita é
uma região de cultivo, ele colocou a grande tarefa pela qual a comunidade se
formou e se renova incessantemente. As grandes construções, pirâmides e templos,
as estradas, cidades e os canais de irrigação marcam a paisagem. Esta marca
deixada no país pelas construções é antes de tudo uma santificação do terreno
conquistado que é incluído no mito.
No Egito que se achava protegido pelo deserto, a atividade
guerreira é menos importante que a que se desenvolve no Oriente Próximo, como na
Assíria onde a característica guerreira degenera-se num despotismo arbitrário,
com o imperador construindo um aparelho de Estado que se opõe ao povo em forma
de tirania imobilizando a cultura, que entra em regressão em proveito apenas das
técnicas militares.
José Tadeu Cordeiro baseou-se em Kurt Shilling, História das
Idéias Sociais.
Interpretando o texto
1ª. Qual a comparação entre as sociedades humanas e os animais no início de
nossa existência (em que sentido nos aproximamos e nos afastamos dos animais)?
2ª. Como o autor aproxima as pinturas rupestres de uma concepção religiosa do
homem?
3ª. Qual o papel da técnica e da linguagem na evolução do homem?
4ª. Qual a base do desenvolvimento das grandes civilizações? Qual o papel das
grandes obras nesse desenvolvimento?
5ª. Qual a concepção de comunidade na visão do autor? Como essa comunidade se
faz presente no Faraó?