Em 1978, Caio Prado Jr. chamou a atenção para a oportunidade de retomar a discussão sobre os problemas agrários no Brasil, porque, diz ele “a revolução de 1964, só fez consolidar nosso passado colonial, com fornecimento e disponibilidade de mão-de-obra de fácil exploração e custos mínimos”. Para o autor esta é a origem e ampliação dos bóias frias nas periferias das cidades brasileiras.
Para Caio Prado, a reforma agrária deveria representar um
grande e natural passo no processo de evolução do país, onde o real
desenvolvimento consiste na superação das atuais situações sócio-econômicas
herdadas do passado, sobretudo das estruturas agrárias que mantém uma parte
considerável da população em miseráveis condições de vida, materiais e
culturais. São essas condições que a reforma agrária deve superar, uma vez que
essa baixa qualidade de vida influi no deslocamento da população da área rural
para as cidades, principalmente para os grandes centros urbanos, acarretando uma
série de novos problemas.
É nessa perspectiva que se deve considerar a reforma agrária,
na marcha do país para o seu futuro, isto é, na valorização do homem. Processo
de valorização este que, por contingências histórias desfavoráveis nos atrasamos
tão largamente quando comparado ao mundo moderno.
O problema maior é a concentração da propriedade fundiária, e
as demais circunstâncias econômicas, sociais e políticas que derivam dessa
concentração. A utilização da terra se faz então, em benefício de uma minoria,
decorrendo daí o miserável padrão de vida da maioria da população rural,
incluído aí os que sobrevivem do trabalho rural nas periferias de nossas
cidades. Nessas condições milhões de brasileiros vivem suas vidas sem
perspectivas, e ainda, constituem-se no principal obstáculo ao desenvolvimento
econômico e cultural do país.
A grande propriedade rural constituiu-se no elemento central
da colonização, que necessitava dela e do trabalho escravo para realizar os fins
a que se destinava: o fornecimento em larga escala de produtos primários ao
mercado europeu. Mudamos muito desde a Colônia, mas essa nova e complexa
estrutura social não conseguiu superar os velhos quadros econômicos coloniais,
ao assentar-se na utilização do latifúndio, e da exploração agro-mercantil
voltada para o mercado externo.
Esta estrutura de distribuição da terra fez com que uma
parcela considerável da população rural não disponha de terras suficientes para
sua manutenção, em nível adequado. Enquanto outra parcela, que em conjunto com a
anterior representa a grande maioria da população que habita o campo brasileiro,
e incha a periferia das cidades brasileiras, não dispõem de terra alguma, nem de
recursos e possibilidades para ocupar e explorar terras alheias a título de
arrendamento autônomo.
Ora, a considerável massa de trabalhadores sem outro recurso
que alienar sua força de trabalho, faz pender a balança da oferta e procura de
mão de obra decisivamente em favor da procura, que as encontra assim em situação
de impor suas condições, quase de maneira ilimitada, nas relações de trabalho.
Essa é a razão principal dos ínfimos padrões sócio-econômico do trabalhador
rural brasileiro, e que influirá nos baixos salários urbanos, pela concorrência
permanente deste potencial de mão de obra de baixo custo, oriunda do campo.
No seu conjunto e no que diz respeito ao fim essencial da
agropecuária brasileira, ela foi no passado, e é ainda hoje, uma empresa coroada
de êxito. Basta observar a riqueza proporcionada a seus empreendedores –
senhores de engenho no Nordeste, seringalistas, na Amazônia, cafeicultores no
Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais e Paraná, pecuaristas no Brasil todo,
produtores de laranja em São Paulo, e, mais recentemente os usineiros em São
Paulo e, os produtores de soja no Brasil Central. Os procedimentos da
agropecuária brasileira, por mais criticáveis que sejam no geral, se justificam
frente ao objetivo visado: a maior soma de lucros no menor tempo possível e com
um mínimo de investimentos iniciais. Se isso foi atingido e, o foi na maioria
dos casos, onde está o erro?
Esta indagação mostra como é falso considerar os interesses
da agropecuária acima dos que dela se ocupam. Em muitos casos, os fatores
positivos que favoreceram a agropecuária brasileira como negócio, constituíram
precisamente as circunstâncias negativas, responsável pelo baixo nível de vida
de nossa população rural. Senão vejamos, desde a ocupação e colonização do
território brasileiro, os títulos de propriedade e o domínio da terra galopam
muito adiante da frente pioneira de ocupação. O papel que ainda hoje lhe cabe, é
tão somente de fornecer mão-de-obra à minoria de privilegiados que detém a posse
da terra.
Em suma, os êxitos comerciais da agropecuária brasileira são
essencialmente devido às duas circunstâncias: disponibilidade abundante de
terras e de mão de obra, circunstâncias estas que se constituem nos fatores
determinantes dos baixos padrões de vida da população rural brasileira.
Caio Prado vê o avanço tecnológico da agricultura brasileira
com certa preocupação. Como o que lhe preocupa é a melhoria da qualidade de vida
do trabalhador rural, ele observa que a melhoria da tecnologia empregada no
campo, não significa, necessariamente, melhoria de qualidade de vida do
trabalhador e, às vezes pode até agravá-las. E usa como exemplo as fazendas
produtoras de café, onde a remuneração do trabalhador não difere muito naquelas
que usam melhor tecnologia daquelas em que a tecnologia é mais rudimentar. A
diferença se encontra unicamente na rentabilidade daqueles tipos de
estabelecimentos rurais, que, evidentemente, é maior nos que usam tecnologias
modernas.
O certo é que o progresso técnico, que visa maior
rentabilidade ao empresário, não constitui, por si só, fator de elevação da
qualidade de vida do trabalhador rural. O que contribuiria para melhorar a
qualidade de vida do trabalhador é o equilíbrio do mercado de mão de obra, a
saber, a relação de oferta e procura que nele se verifica. Oferta e procura que
não se modificarão enquanto permanecerem as condições vigentes em que os
trabalhadores rurais não encontram outra alternativa de ocupação que não na
venda de sua força de trabalho a uma reduzida classe de grandes proprietários
que monopolizam de fato a maior parte das terras disponíveis.
Quando a conjuntura lhe é favorável, a grande empresa rural
se expande e tende a absorver o máximo de terras aproveitáveis, eliminando
pequenos proprietários independentes e, inclusive arrendatários, bem como suas
culturas de sobrevivência. Agravam-se as condições de vida da população
trabalhadora rural, cuja remuneração, seja em dinheiro ou em participação no
produto principal fica abaixo dos preços dos produtos de subsistência que os
trabalhadores são obrigado a adquirir no mercado.
A concentração da propriedade agrária obriga a pequena
propriedade (o sítio) a se dividir indefinidamente (os filhos ficam com uma
parte do sitio ou tem que ir para a cidade em busca de novas oportunidades), o
que significa o empobrecimento das categorias mais modestas, cujo padrão de vida
rapidamente se aproxima daquele dos trabalhadores sem terras, empregados nos
latifúndios. Resulta dessa situação um duplo benefício para o grande
proprietário: maior disponibilidade de mão-de-obra e maior quantidade de terras
prontas a serem absorvidas pelos latifundiários.
Caio Prado acredita que a solução desse problema começaria
com uma reforma cujo principal objetivo consiste em arrancar da miséria a
população rural do Brasil, elevar-lhes os padrões de vida e lastrear com isso o
desenvolvimento brasileiro, que sem isso não passará de uma ilusão de
desenvolvimento, a disfarçar um profundo e real atraso. Essa reforma deverá
atuar direta e indiretamente sobre as circunstâncias determinantes do equilíbrio
no mercado de trabalho. Uma repartição melhor da propriedade agrária, e o acesso
mais fácil a ela para os trabalhadores rurais constitui, portanto, a meta
principal de uma política orientada para a transformação das relações de
trabalho e melhoria das condições de vida do trabalhador rural, com reflexos
profundos no trabalho urbano.
*José Tadeu Cordeiro adaptou de Caio Prado Jr., A Questão
Agrária.
Interpretando o texto
1.Por que a questão agrária é um dos nossos principais problemas? No que
consiste a superação do problema agrário?
2.Como o autor demonstra que a concentração da terra nas mãos de uma minoria é a
principal causa da mão-de-obra barata, no campo e na cidade?
3.Por que em épocas favoráveis a grande empresa tende a absorver a pequena
propriedade?
4.Qual o outro fator que propicia o desaparecimento da pequena propriedade?
5.Por que a tecnologia não significa melhoria da qualidade de vida do
trabalhador rural?
6.Qual a solução proposta pelo autor para melhorar a vida miserável do
trabalhador do campo?