Estamos no século V antes da era Cristã. A Grécia está dividida em múltiplas cidades, algumas muito pequenas, outras maiores. A mais extensa é Esparta. Essas cidades têm em comum os deuses , uma cultura e a língua. Guerreiam entre si apesar da ameaça de uma invasão bárbara que pesa constantemente contra elas.
Essas cidades criaram colônias que logo conquistaram a
independência e fazem agora circular um espírito novo. É preciso construir
cidades, criar instituições e, o pensamento tradicional está sendo submetido á
duras provas. A tradição não basta a essas cidades. Este espírito novo remonta
até o centro, e já no século VI, todas essas cidades são varridas por um vento
de renovação.
Isso vale principalmente para Atenas, onde alguns homens vão
inventar o que será chamado de “democracia”. Na época a democracia se define
essencialmente pela igualdade. Todos os cidadãos, quaisquer que sejam, quaisquer
que sejam sua fortuna são iguais perante a lei. Tem o mesmo direito de intervir
diante dos tribunais e de tomar a palavra nas Assembléias em que se decide o
destino coletivo.
Na verdade, na democracia a palavra torna-se rainha. Nestas
cidades tradicionais a educação era moral e militar. Dava-se pouco valor a
palavra. Falava-se pouco e, quando se falava, recitavam-se os velhos poemas
tradicionais, que glorificavam as origens das cidades.
No século V aC, Atenas assumiu uma importância considerável.
Os bárbaros vindo da Pérsia invadem-na por duas vezes, em 490 e 480 aC e, nestas
vezes foi a jovem cidade de Atenas que travou o combate decisivo contra os
invasores. Após a vitória na batalha de Salamina, Atenas se tornou um poder
importante, para o qual todos os olhares então se dirigiam. A democracia
ateniense, a partir daí, aparece como modelo.
Pode-se dizer que, partindo de Atenas, o gosto pela palavra
conquista a Grécia inteira. Ao mesmo tempo em que nascem novas técnicas e artes.
A palavra tekhnê representa, simultaneamente, a idéia de técnica de um saber
aplicado e a idéia de arte, de invenção, de produção original. Esse
desenvolvimento do uso da palavra levou ao nascimento da retórica.
Para ocupar um lugar numa cidade assim é preciso falar,
saber, convencer. A democracia ateniense tem necessidade de “professores”, de
pessoas capazes de ensinar a falar bem, a manejar habilmente os argumentos de
modo a convencer os tribunais ou nas assembléias públicas. Saber convencer de
que essa posição é melhor do que aquela é de importância capital. Platão nos
fala destes “professores” da democracia. Ele os chama de sofistas, termo que se
tornou “suspeito”, devido a Platão.
Etimologicamente sofista quer dizer apenas “intelectual que
sabe falar”, que domina a linguagem. São pessoas que vem do Sul (da Grécia) que
se instalam em Atenas, abrem escolas de “retórica”, que são ao mesmo tempo
“escolas de política”. Assim, após a vitória contra os persas, Atenas torna-se
poderosa, forma um império e reforça seu regime democrático.
Falamos do século de Péricles, esse século que durou 30 anos.
Mas é certo qualificá-lo de século, já que tantas coisas aconteceram em apenas
30 anos. Na Atenas de Péricles produziu-se uma verdadeira aceleração histórica.
Na verdade, duas frentes se confrontam: os sofistas e a velha e tradicional
aristocracia. Uma parte da aristocracia, que ama a cidade, pensa que Atenas
estava tomando um caminho perigoso. Na opinião deles, Atenas está promovendo uma
orgia de gastos e, assumindo um imperialismo, às vezes cruel. Prática com
desfaçatez o comércio e a busca do lucro.
A tradição encontra eco nos grandes poetas trágicos. Ésquilo,
embora modernizando a tradição, conserva a chama da velha concepção de mundo em
que os deuses são onipresentes e é preciso tomar cuidado para não chocá-los.
Contra essa tradição que se desenvolve o pensamento sofístico. Entre essas duas
forças que combatem entre si – uma tradição envelhecida e gloriosa que não
responde mais as evidências da realidade e da sociedade e o novo pensamento
sofista, talvez subserviente demais a essa exigências – surge um estranho
personagem: Sócrates.
Mas Sócrates, a seu modo é um sofista. Só que ao contrário
destes não abre uma escola nem pede dinheiro aos seus interlocutores. Ele fala
porque tem prazer nisso e lamenta ver seus concidadãos se entregarem à
imoralidade e ao gosto pelo luxo. Sócrates anda pela cidade, cumpre seu ofício
como cidadão. Combate, quando tem que combater, trabalha, quando tem que
trabalhar, mas não tem uma profissão. Precisa de pouca coisa para viver. Faz uma
crítica violenta a tradição e, também, aos sofistas. Mostra a todos que ocupam
posições que, embora pensem que sabem tudo, na verdade, não sabem nada.
Sua intenção, segundo Platão. É salvar a cidade, mas é mal
interpretado, levado diante dos tribunais sob a acusação de corromper a
juventude, é condenado à morte. De seus ensinamentos e de sua morte é que
nascerá a filosofia.
Platão tornou-se o administrador da filosofia socrática, para
que a cidade se transformasse e homens como Sócrates pudessem viver. A obra de
Platão é toda contra os sofistas e, só moderadamente, ataca à tradição.
Entretanto, o pensamento platônico parte do mesmo ponto que
os sofistas: a palavra. Para lutar contra a palavra mentirosa, só dispomos da
palavra, a menos que nos entreguemos à violência e, isso ele recusa.Platão
fundou a Academia em 384 aC e, nessa escola, além de matemática e da dialética
procede à refutação aos professores da democracia. Mostra que não há nenhuma
razão para que a maioria tenha razão. O número de votos não faz a verdade. E,
Platão se propõe, usando apenas da palavra, construir um discurso que seja juiz
de todas as palavras (o conceito).
Ele retoma o procedimento socrático. Seus diálogos partem de
perguntas simples: Fulano agiu com justiça em tal circunstância? E a partir daí
pergunta: o que é justiça? A filosofia parte de perguntas simples, o que os
filósofos chamam de questões empíricas. A partir daí ela tenta construir uma
argumentação no plano do conceito – da idéia clara e distinta, como dirá
Descartes.
Tendo feito a pergunta, Platão mostra a idéia central a qual
ele se refere. Depois, através de um jogo de perguntas e respostas, monta um
dispositivo que, a cada etapa do desenvolvimento, exige concordância dos
interessados. É por isso que o diálogo é a forma da filosofia nascente. A arte
do diálogo se chamará dialética. O filósofo oporá sua dialética à retórica dos
sofistas. Aristóteles refina essa oposição, distinguindo a persuasão – segundo
ele, a arte do advogado de defender seu cliente, pouco preocupado com a verdade
– da convicção, que cria verdades duradouras para o interlocutor.
O filósofo platônico constata que, na Assembléia do Povo, que
toma as decisões para Atenas, cada um vê as coisas através do próprio prisma.
Cada um constrói a realidade em função de suas paixões, de seus desejos, de seus
interesses e a decisão que disso resulta não é necessariamente verdadeira. Ora
essa maioria ganha, ora ganha outra maioria. Não seria melhor levar em conta a
opinião de todos o tempo todo.
O trabalho do filósofo, parte daquilo que cada um considera
seguro, desses pretensos fatos para a prova dos sentidos. Trata-se de submeter,
a todo o momento, os fatos aos conceitos que foram estabelecidos.
Ao examinarmos a estrutura dos diálogos platônicos, temos a
impressão de que Platão deixa falar um dos interlocutores que, bruscamente,
começa a contestar a posição do mestre. Progressivamente, sentimos que o
discurso se constrói, que o assunto se esgota e o diálogo se acaba quando todos
os interlocutores estão de acordo que se conseguiu responder a pergunta feita no
início. O diálogo termina quando se sente que não se saberá nada a mais.
O homem é um ser que vive em comunidade, nesta deve-se tentar
construir, levando-se em conta as forças e as fraquezas humanas, um discurso tão
bem argumentado que, no fim, cada um dos participantes fica obrigado a
concordar, a aceitar esse discurso.
Aristóteles, chamará esse discurso de Sophia, e aquele que o
faz, que tende amorosamente a construção dessa Sophia, de philósofos. Na Sophia
há duas dimensões: a primeira teórica, corresponde ao discurso que provoca o
assentimento de todos aqueles que o ouvem; a segunda dimensão é de ordem
prática, que exige que nos comportemos de acordo com o discurso. A filosofia
(sabedoria) é tanto uma maneira de pensar como uma maneira de se comportar.
Aliás, a tarefa do pensamento de Platão é formar homens de
poder, homens preparados para obter o assentimento, que devem construir uma
política que receberá a concordância de todos e fará cessar a guerra civil. É um
projeto considerável.
A submissão do fato à prova da significação supõe a
construção do conceito. Este (conceito) nada mais é do que a estrutura mental
que acompanha o desenvolvimento do discurso. Chatelet chama atenção para a 3ª
parte do Górgias, onde há uma discussão entre Sócrates e Cálicles sobre o
significado da justiça e o uso da retórica. Cálicles responde com veemência,
quase com grosseria a argumentação socrática. Depois, em certo ponto do diálogo,
Cálicles se torna amável, limitando-se a responder: “claro, estou de acordo com
você. Naturalmente Sócrates...”. Ao fim de certo tempo,Sócrates percebe a
mudança e quer saber a razão de “tanta cortesia”. Recebe esta resposta terrível:
“Se estou sendo amável com você, é porque não me interesso nada pelo que você
diz. Continuei a falar com você por deferência ao velho Górgias(...)”. Essa é a
maior objeção que se pode fazer ao filósofo.
O que fazer com aquele que usa a palavra como um instrumento,
que não se preocupa com o significado das palavras, que não se esforça para a
construção de um discurso que requeira a adesão dos outros.Esta é a grande
questão da filosofia e, Platão levanta esse problema com um vigor espantoso. O
filósofo diante dessa objeção trágica, irá além do simples assentimento dos que
estão presentes, afirmará que o discurso que faz, por excelência, corresponde ao
real.De certa forma, essa filosofia foi incentivada por Sócrates. Acontece que
só o conhecemos através dos diálogos de Platão e, de algumas citações de
Aristóteles.
Também o conhecemos através de Aristófanes. Em, As Nuvens, o
herói que representa Aristófanes, convoca o povo de Atenas a incendiar “O
Pensatório” de Sócrates e, acabar com essa raça, com essa corja de bandidos que
se chama filósofos.
Platão constatou que a democracia se engana, que os
profissionais competentes também se enganam. Ele toma emprestado á democracia “a
maioria” e com ela procura chegar à universalidade. Toma por empréstimo á
técnica do diálogo e, reunindo esses dois aspectos, deseja poder instituir uma
forma de competência universal, que seria a competência da razão.
Nesse sentido que o filósofo assume uma responsabilidade
enorme quando diz: “Vou construir um discurso universal, capaz de julgar todos
os outros discursos e, conseqüentemente, todas as condutas. Vou determinar,
através do meu discurso quem é louco, quem é criminoso, etc.”
É um discurso totalitário? O risco de um discurso totalitário
está presente na filosofia. Mas é pouco provável que os filósofos procurem um
discurso totalitário. Razão e liberdade caminham juntos num discurso filosófico.
Mas um risco dos políticos usarem a filosofia como explicação totalitária para
se justificarem.
José Tadeu Cordeiro baseou-se em François Chatelet,
Introdução à Filosofia.
Interpretando o texto
1ª Qual a importância da “palavra” (diálogo) na democracia?
2ª Qual a importância dos “sofistas” para a educação grega? O que é um sofista?
3ª Explique o que o autor chama de confronto entre a tradição e os sofistas.
Quais as posições de Sócrates e de Platão a respeito desses dois “grupos” que se
enfrentam?
4ª Como Platão constrói sua “filosofia”? O que é a filosofia? O que é o
conceito?
5ª Comente as dimensões: teórica e prática da filosofia, segundo Aristóteles?
Isso pode nos levar ao totalitarismo na filosofia e na ação política?