Uma inquietude quanto ao destino de nossas vidas e, de maneira mais geral, da espécie humana, parece estar se infiltrando em nosso cotidiano. Imagens alarmantes vão se empilhando dia após dia: a de uma proliferação de povos famélicos na maior parte do planeta, a de um fluxo migratório irreprimível em direção a regiões prósperas, a de uma horda de pobres investindo contra os mais ricos rompendo barreiras, pilhando, devastando, impondo suas leis. Seria isso o século XXI?
Essas imagens se constroem sobre dados demográficos, fatos
noticiados e previsões que suscitam medo. Nessas representações mentais, na
insidiosa ansiedade que alimentam, enraízam-se todas as formas, conscientes ou
não, da tentação de se fechar, de se proteger, o medo do outro, seja ele quem
for, julgado delinqüente a priori, e que deve ser contido, impedido de se
prejudicar.
Entre os dilemas que nos atormentam ao se aproximar o ano
2000, este é com certeza o mais nocivo. Ele mina em profundidade nosso sistema
de valores. Envenena nossa civilização. Enfraquece-a. Para pensar com serenidade
os meios capazes de confrontar os problemas que o fizeram surgir, vale voltar-se
para o passado. Por isso submeto à reflexão do leitor alguns elementos que tiro
de minha experiência como historiador sobre a evolução da sociedade na Europa da
Idade Média. Eles podem servir para pensarmos o futuro.
Uma quantidade de indicadores mostra que a natalidade na
Europa de 1000 anos atrás não era menos exuberante que a de hoje nos países do
Terceiro Mundo. Nada a limitava, a não ser a castidade imposta a uma parcela
considerável da população masculina voltada ao serviço de Deus. As práticas
contraceptivas e abortivas não eram desconhecidas, apenas de uso extremamente
restrito e severamente condenadas pelas instituições religiosas.
No entanto, essa exuberância era largamente corrigida pela
alta mortalidade infantil, mais devastadora nos meios sociais baixos, e por
ondas periódicas de escassez alimentar e epidemias. Devido a essa regulação
natural, as taxas de crescimento demográfico mantinham-se aquém de 0,6% ao ano.
Isto é, muito abaixo das que se verificam nos países mais pobres de hoje. Se os
terrores do ano 1000 realmente existiram, o que duvido, é certo que se apoiavam
na percepção de uma demografia galopante e perturbadora.
Sem a menor dúvida, esse crescimento comedido foi o principal
fator do progresso material continuo que favoreceu a Europa daquele tempo. Pode
se afirmar que todas as conquistas da civilização européia, o impulso da
ciência, o abandono da selvageria são frutos dele. Foi um fator de progresso
porque se operava em espaços onde a densidade de ocupação do solo era pequena,
comparável à da África negra de hoje. O aumento da população encontrava
facilmente onde se espalhar, e aí está a principal diferença da situação
presente. O capital de que podiam dispor os homens se oferecia em abundância:
era a terra. No meio de uma economia essencialmente rural, em que a mão-de-obra
constituía o mais ativo agente de produção, o crescimento determinou a extensão
do espaço cultivado e o aumento dos rendimentos.
Claro que o número de bocas a alimentar também crescia, às
vezes depressa demais, e daí os bruscos movimentos reguladores que surgiam de
tempo em tempo: os períodos de fome. Contudo, vale lembrar que durante esses
primeiros séculos do milênio o problema social da indigência parecia não
existir, a caça aos pobres não estava aberta. Isso se explica. Na sociedade
inteiramente camponesa da época ainda intervinham com vigor os mecanismos de
compensação, como obrigações de solidariedade e partilha dentro do grupo de
parentesco, das confrarias, das associações aldeãs.
Sobretudo, havia em funcionamento a instituição política de
base, o domínio senhorial, todo senhor sendo obrigado abrir seus celeiros aos
necessitados e a redistribuir uma parte dos ganhos entre os súditos. Nos campos
que se começavam a povoar, a miséria não existia.
Foi no meio do século XII que a idéia do sentido da história
humana se modificou drasticamente, baseada em um sentimento de vitalidade diante
do espetáculo de uma proliferação harmoniosa do gênero humano. Os homens de
cultura deixam de pensar que as coisas da terra se degradam inelutavelmente com
o tempo. O mito de progresso se instala definitivamente na consciência coletiva.
Paradoxalmente, surge nessa época – meados do século XII – a descoberta social
dos miseráveis.
A miséria é descoberta nas cidades, que voltaram a ocupar o
lugar de proeminência que fora seu no mundo antigo. È nas cidades que os
servidores do conde de Champagne socorrem infelizes que não podem se alimentar
sozinhos. É também nas cidades que se criam as primeiras fundações destinadas a
aliviar o sofrimento dos mais pobres. Com excedentes da população rural sendo
despejados nas periferias urbanas, e com o sistema de solidariedade tradicional
incapacitado para atender a todos, a questão do indigente tornou-se preocupação
do conjunto do corpo social. Os motivos não diferem substancialmente dos de
hoje: fortunas até então fundiárias começaram a se desestabilizar e a riqueza
tornava-se mais móvel, portanto também mais vulnerável – uma bolsa e mesmo um
cofre se roubam mais facilmente do que um pedaço de terra. Os ricos não tardaram
em perceber a utilidade de atender às necessidades dos pobres, a fim de evitar
que eles próprios tomassem a iniciativa.
Foi nesse período que as práticas religiosas se transformaram
radicalmente, com uma renovação notável do cristianismo. A partir de meados do
século XII os fiéis são chamados por uma nova pastoral a não mais se satisfazer
com as cerimônias e as fórmulas rituais. No século seguinte, enquanto aumentava
na sociedade urbana à distância entre gordos e magros, enquanto se ampliava a
pregação dos frades mendicantes, dos dominicanos, dos franciscanos sobretudo,
com sua vida de despojamento que emulava dos apóstolos, impôs-se à idéia de que,
para agradar a Deus, os ricos deveriam partilhar com os pobres. Em nome de um
cristianismo que então se refere resolutamente ao Evangelho, a pobreza é elevada
à condição de valor fundamental. Ela é vista como um sinal de eleição divina.
Através dessa mudança de ética da sociedade, adiou-se mais uma vez a caça ao
pobre.
Só que o número deles crescia. Ao mesmo tempo, por falta de
inovação tecnológica, a produção agrícola não mais acompanhava esse crescimento.
Às vésperas do século XIV a Europa já está decididamente superpovoada. A maioria
das famílias camponesas não mais possui terra suficiente para subsistir, e
freqüentemente falta pão nas cidades. Ainda assim a História não revela sinais
evidentes de uma ascensão do medo diante dos pobres. Essa sociedade exclui e
trancafia os leprosos, massacra-os em 1321. Exclui os judeus, isola-os em
guetos, também os massacra. Ainda assim, a moral vigente ainda impedia a
sociedade de excluir os pobres.
É verdade que a pobreza da época se mantinha diluída no corpo
social. Não existia nas aglomerações urbanas uma segregação entre bairros
abastados e os outros. Pobres e ricos moravam nas mesmas ruas, nas mesmas
edificações. Uma tal coabitação tornava mais eficaz o funcionamento do sistema
caritativo. Os miseráveis ainda não formavam um grupo coeso, uma classe perigosa
da qual fosse preciso proteger-se, cercando-a, expulsando-a.
Foi no século XIV que sucedeu a catástrofe. Em conseqüência
de uma súbita falha das defesas imunológicas diante da agressão de uma infecção
vinda da Ásia – a peste negra – talvez um terço da população tenha sido dizimado
em alguns meses na maior parte das províncias européias. Um mecanismo natural
inesperado restabelecia assim, de maneira trágica e violenta, os equilíbrios que
o crescimento demográfico havia destruído. O choque, no entanto, foi de tal
envergadura, amplificado pelo retorno periódico da epidemia e agravado pelas
convulsões políticas da época, que, num mundo ainda provido de recursos mas
muito traumatizado, se pôs em marcha o processo que dura até hoje: instalou-se
na consciência do corpo social a convicção de uma equivalência entre a miséria,
agressividade e perigo. Foi a grande moldura para o início da exclusão dos
pobres. Na Europa do século XV tem inicio a sua marginalização. Riqueza vira
sinônimo de virtude.
Não sou moralista. Tampouco sou futurólogo, e estou
convencido de que a História jamais se repete. Mas ela pode nos encaminhar à
reflexão. Por isso deixo o leitor com esses dados em estado bruto, limitando-me
a sublinhar o que mostra esse longo encadeamento de fatos – que a espécie humana
se curva às circunstâncias. Cabe pensarmos a quais circunstâncias desejamos nos
curvar, no futuro.
DUBY, Georges. Lição de História, Veja, Reflexões para o Futuro, Editora Abril Ltda, São Paulo, 1993.
Interpretando o texto
1.Quais as imagens que nos alarmam no nosso dia a dia? Como se constroem essas
imagens?
2. Por que o autor diz que essas imagens envenenam nossa civilização?
3. Qual a comparação da Europa do ano mil com o Terceiro Mundo? Como era
corrigida a exuberância da natalidade?Como o autor justifica o progresso da
Europa pós ano mil?
4. Como se deu a descoberta dos miseráveis em meados do século XII? Qual a
mudança que o autor imputa ao cristianismo nessa época?
5. Como, já no século XIV, se restabelece o equilíbrio do crescimento
demográfico? Qual a conseqüência desse choque na consciência do corpo social?