No ano mil da Paixão do Senhor, anunciou-se em todas as dioceses a realização de concílios em lugares determinados, reunindo os prelados e os príncipes de todo o país para a reforma da paz e a instituição da santa fé.A iniciativa parece ter partido dos bispos e dos superiores dos mosteiros, notadamente do abade de Cluny; e os prelados conseguiram conquistar para suas idéias os membros da alta aristocracia regional, obtendo que presidissem, em sua campanha, os concílios de paz.
Em que medida a situação dos leigos foi modificada pelos
regulamentos que esse movimento suscitou e pelas representações mentais cujo
nascimento ele favoreceu?
Como todos os fatos da história religiosa, o movimento pela
paz de Deus se apresenta na verdade sob dois aspectos: o espiritual e o
temporal. Por um lado às instituições de paz são concebidas e estabelecidas em
função de certas aspirações à perfeição e à salvação, apresentam-se como um dos
meios de realizar o reino de Deus e são por isso portadores de valores morais.
Por outro lado, o movimento responde a uma certa inserção da Igreja no âmago do
século, de seus problemas e de suas mudanças. A paz de Deus, considerada como
agente de renovação da noção de laicato, participa, como uma de suas
manifestações iniciais, desse impulso que subverteu a cristandade do Ocidente e
culminou, no fim do século XI, na Reforma Gregoriana e nas Cruzadas, ao tempo em
que colaborava para fixar os traços da sociedade feudal.
Raul Glauber integra o movimento da Paz ao esforço geral dos
altos dignitários da Igreja para subtrair essas pressões do temporal, para
situá-la, em posição dominante e torná-la capaz de uma missão que antes
pertencia à realeza: conduzir o povo de Deus a sua salvação. O que era ver
justo.
Nos anos 990, a realeza tinha perdido todo o poder, toda a
ação sobre os poderes laicos. Estes exerciam a partir daí, a título privado em
seu benefício, as regalias, as prerrogativas de comando outrora delegadas ao
soberano e que eles detinham agora pelo direito hereditário. Julgar, punir,
tornava-se, desde então, uma oportunidade de arrecadar das populações taxas
lucrativas: as consuetudines. Cada um dos senhores leigos herdara tal direito e
procurava estendê-lo, reivindicando-o, notadamente das terras e dos homens da
Igreja. Esses homens e essas terras eram protegidos pelos privilégios de
imunidade, que o enfraquecimento do poder real tornava sem efeito. Entre as
regalias que passavam ao patrimônio privado dos condes, na Gália meridional,
figurava o direito de nomear as mais altas dignidades religiosas, de dispor das
sedes episcopais e das abadias.
De duas maneiras os poderes temporais ameaçavam as liberdades
da Igreja: a fortuna de Deus e dos santos de um lado e os ofícios pastorais de
outro, acabavam, em 990, passando ao controle e à exploração de uma autoridade
privada, não sagrada como o rei, mas meramente consuetudinária. O espiritual
tornara-se escravo e libertar-se era o desejo de parcela do clero não de todo
contaminado pelas práticas simoníacas, notadamente daqueles que estavam em
contato com o movimento de Cluny.
As disposições dos primeiros concílios são a de proteger
contra a violência e contra as instruções dos novos poderes laicos, que se
constroem então e se defrontam numa concorrência agressiva, as “coisas
sagradas”, os “servidores de Deus” e, por fim, os “pobres”.
Duby cita Charroux, 989, onde três categorias de violência
são reprimidas: o anátema punirá primeiro aos que violarem a Igreja e ali
tomaram qualquer coisa à força, em segundo, aos que agrediram um clérico
desarmado e, por fim, os que despojaram um camponês e ou um pobre qualquer.
As decisões dos concílios de paz retomam os termos das
capitulares e dos editos carolíngios, só que alterando a paz do Rei (dos textos
do século IX) que defendia “os pobres, os órfãos, as viúvas e a Igreja de Deus”
pela paz de Deus, que transferia, numa região, mais do que qualquer outra
privada do poder do rei, aos próprios bispos, que fariam reinar a paz de Deus,
usando as sanções espirituais, trabalhariam, como está no Primeiro Concílio de
Potiers (1011-1014) para a restauração da paz e da justiça, missão eminentemente
real. O movimento de paz surgiu como uma tentativa de combater o enfraquecimento
de uma autoridade real, em que se confundia espiritual e temporal.
Duby observa ainda que o Concílio de Potiers não legislava
apenas contra a violência que ameaçava as coisas sagradas, mas também contra a
simonia e o concubinato dos padres. Nesse momento começa-se a querer que os
cléricos respeitem os interditos que até então só eram impostos aos monges – as
duas ordens, cléricos e monges tendem a confundir numa só, isolando-se mais os
leigos.
Em seu esforço para proteger as coisas de Deus e impedir que
as terras da Igreja fossem desonradas por algum mau costume, os bispos, os
juízes e defensores dos cléricos e dos monges foram levados a proteger uma parte
do povo leigo, aqueles que os reis, outrora, tinham a missão de salvaguardar.
Daí em diante, os leigos foram divididos em duas categorias: aqueles que era
preciso defender e aqueles cujas tendências agressivas era preciso reprimir. Os
primeiros eram os pobres – camponeses, principalmente, mas também mercadores,
peregrinos e mulheres nobres. Aos pobres, os textos opõem os nobres,
especialmente os “cavaleiros”, amaldiçoando-lhes as armas e os cavalos.
Com efeito, a violência, a cobiça e as exações prejudicavam a
Igreja, aos servidores de Deus e aos pobres. No momento em que o vocabulário das
decisões conciliares começa a distinguir cavaleiros e camponeses, também as
cartas redigidas na Gália do Sul se empenha em opor as mesmas categorias
sociais.
Aos milities, os primeiros concílios de paz não davam o
direito de combater. As armas lhes conferiram poderes, principalmente o de
julgar e punir. Desde a origem, a legislação da paz de Deus prevê que só ficarão
ao abrigo da violência secular os “pobres” que não cometeram delitos. “Que
ninguém tome o haver de um camponês”, proclama em 1054, o Concílio de Narbone,
“a não ser seu corpo, por um delito que ele próprio tenha cometido, e que
ninguém o submeta a um poder a não ser direto”. O que se condena é a pilhagem
injusta. São justas as multas de justiça e as exações regularmente recolhidas, o
poder banal, a submissão ao senhor. Por outro lado, os cavaleiros, homens
perigosos, mas igualmente, homens ameaçados, têm o direito de enfrentar seus
inimigos desde que estejam armados, mesmo que sejam cléricos : a paz de Deus só
protege cléricos desarmados.
A guerra privada não é condenada, o que os primeiros
concílios buscam é um sistema de sanções e compromissos coletivos, proteger
contra a agressão e a pilhagem determinados lugares e categorias sociais. A paz
de Deus, no começo, tendeu a circunscrever a violência militar aos homens que
usavam o glaúdio e o escudo e, que andavam a cavalo.
Com o desenvolvimento das reformas, alguns prelados passaram
a considerar que o reino de Deus exigia medidas mais profundas. Desde o seu
nascimento, a exigência de paz se achava inclusa numa vontade mais geral de
purificação. Aos olhos do movimento reformista, combater, portar armas e delas
se servir começava a ser considerado, no fim do século X, uma mácula, da mesma
forma como o gosto pelo dinheiro e o ato sexual.
Desde sempre, tornar-se monge era renunciar a espada, assim
como ao ouro e as mulheres. Num corpo de servidores de Deus, a intenção pacífica
se encontrou ligada ao ideal conjunto de castidade e da pobreza, do qual os
gregorianos se tornariam paladinos.Essa concepção prosperou, favorecida pelas
instituições da paz de Deus. Afigurava-se cada vez mais necessário que os padres
fossem pobres, levassem como os monges uma vida comum. Logo se considerou que
eles deviam depor armas (como os monges) e situar-se entre os inermes. Os textos
do fim do século XI proibia assaltar os cléricos, que já não portavam armas.
Mas logo o mesmo ideal foi proposto aos leigos, como um
compromisso salutar de penitência. Reunindo multidões em torno dos relicários
cobertos de virtudes, impondo aos leigos reunidos uma profissão coletiva de
renúncia, eles visavam a conjurar a ira de Deus, a vencer os flagelos, a fazer
recuar a fome e as pestes. Talvez fosse mesmo preciso situar sua intenção
deliberada de penitência suscitada pela aproximação do milênio da Paixão e pela
expectativa do fim dos tempos. Raul Glaber vê multiplicarem-se as perigrinações.
A paz de Deus muda então de caráter. Já não é apenas um pacto
social, cimentada pela ameaça de sanções espirituais. Ela assume resulutamente o
aspecto de um pacto com Deus. Trata-se de apaziguá-lo mediante a promessa de
abstinências voluntárias ; trata-se, diante de sua cólera, de purificar-se do
pecado.
Por volta de 1033, a Igreja propôs aos leigos que eram
armados, os nobres e os milities, associarem-se a obra comum da renúncia. Que
não mais se contentem em respeitar os regulamentos anteriores da paz, evitando,
no curso das operações militares ou no exercício do poder senhorial, causar
danos a Igreja, aos ministros de Deus e aos camponeses. Que aceitem também, no
campo da atividade permitida pelo direito mas que se começava a julgar perigosa
para a alma, privar-se da guerra de combate e da pilhagem. Os cavaleiros foram
exortados a abster-se da guerra em certos períodos, tam como o povo inteiro se
abstinha em determinados períodos de alimentos muito agradáveis, e isso no mesmo
espírito de pobreza.
A obrigação de respeitar a paz veio a juntar-se a trégua,
suspensão geral e temporária da atividade militar. Em certas datas, a classe
guerreira, por um movimento de conversão quase monástica, proibe a si mesma esse
prazer, cita o exemplo do cavaleiro que durante a Quaresma se despojasse
voluntáriamente de seu arnês militar. Ninguém devia atacá-lo. A estipulação era
inovadora por revelar uma inclinação, talvez nova entre os homens de guerra, a
considerar a abstinência do combate como salvadora e praticá-la durante o tempo
de redenção da Quaresma. Quatro anos depois, o Concílio de Elne impunha a trégua
aos domingos. Outra medida natural, nesse dia santo os trabalhos servis eram
considerados ilícitos. No Concílio de Arles (1037-1041) desde a quarta feira à
noite até segunda feira de manhã, a paz devia reinar “entre todos cristãos,
amigos ou inimigos, vizinhos ou estrangeiros”, isto em memória de Cristo, de sua
ascensão e paixão, de seu sepultamento e de sua ressurreição.
A partir do momento em que, pela paz e, sobretudo, pela
trégua encontrou-se reprimida a agressividade dos cavaleiros, importava-lhe
proporcionar-lhe outras saídas. A proposta da Cruzada encontrava-se em germe nas
disposições dos concílios de paz, pois estas haviam progressivamente ampliado,
no seio do povo de Deus, o campo proibido à guerra. Em 1054, o Concílio de
Narbonne pronuncia esta condenação: “Que nenhum cristão mate outro cristão, pois
quem mata um cristão, derrama o sangue do Cristo”. Ora, o cavaleiro recebera de
Deus a missão de combater. Daí por diante, não lhe foi mais permitido fazê-lo
senão no exterior da comunidade cristã e contra os inimigos da fé. O Concílio de
Clermont (1095) foi antes de tudo um concílio de paz, porque retomou as
injunções de penitência, conferiu valor universal as estipulações, até então
locais, da trégua de Deus, e, sobretudo, porque a intervenção pontifícia
estendeu a todos aqueles que empreendessem a viagem de penitência a Terra Santa
os privilégios até então assegurados aos pobres, aos leigos sem armas. A Cruzada
leva a exigência da paz de Deus à sua realização, porque suscita a partida do
povo dos pauperes para Jerusalém, isto é, para o Reino, inaugurando assim uma
marcha confiante, pacífica, desarmada, porém irresistível. Cabe aos cavaleiros
penitentes flanquear esse novo êxodo, protegê-lo, forçar, se for necessário, o
seu progresso combatendo os incrédulos. Todas as fórmulas das Cruzadas são
extraídas dos cânones dos concílios anteriores da Gália do Sul, até o simbolismo
da Cruz, baluarte contra as violências, sinal de proteção e de asilo.
O reformatio pacis se tornara necessário em virtude da
degradação da instituição real e da evolução da sociedade, na qual a atividade
guerreira se convertia no privilégio de uma determinada classe. Primeiro foi
preciso defender-se dela, discipliná-la e depois esforçar-se por desviá-la para
o bem. Assim, só uma porção do laicato, os cavaleiros sofreram diretamente a
influência das instituições de paz. Mas esta foi profunda. A regulamentação
promulgada pelos concílios fixou-se inicialmente os contornos desse corpo
social, forjou-lhe uma moral particular. No limiar do século XII, a nova militia
recebia a incumbência de duas tarefas conjuntas: as do “homem probo” que defende
a Igreja e os pobres e de combater os inimigos de Cristo.
José Tadeu Cordeiro baseou-se em Georges Duby, A Sociedade
Cavalheiresca.
Interpretando o texto.
01.O que é a Paz de Deus?O que ela pretende mudar ? Por que ela é necessária
nesse período (séc. XI)?
02.Como foi essa mudança para os cavaleiros? Qual a importância das cruzadas
nessa mudança?
03.Como a Igreja obteve o apoio dos cavaleiros? Como isso mudou o comportamento
da nobreza?